Bem-estar dos peixes: conheça práticas que favorecem a qualidade da carne

Diversos fatores podem provocar a sensação de estresse nos peixes, como a falta de oxigênio na água e a superlotação no viveiro

Uma tarefa que passou de pai pra filho, hoje, é a principal fonte de renda do piscicultor Walber Coutinho de Melo, 46 anos. “Arquiteto de profissão, mas piscicultor de coração”, nas suas palavras, ele se encantou pela criação de peixes quando o pai o convenceu de investir no pirarucu. No entanto, a falta de conhecimento técnico de manejo dos peixes levou à morte de muitos dos alevinos, nome que se dá a fase em que o pirarucu já não é mais larva e pode se alimentar.

Foi o que motivou Walber a se dedicar totalmente à piscicultura e a frequentar cursos, além de buscar soluções para a criação de pirarucus através de pesquisas e técnicos. “Começamos o projeto de reprodução primeiro e depois a engorda dos peixes. Aí não teve jeito, me tornei piscicultor de coração, porque me identifiquei com a atividade e fiquei encantado com o manejo dos peixes”, conta.

Logo nos três primeiros meses de reprodução do pirarucu, Walber notou que os peixes não estavam crescendo tanto quanto o esperado e decidiu mudar a alimentação dos animais.

“A cadeia alimentar do pirarucu é exigente e eu não tinha muito conhecimento disso, então dava qualquer alimento. Quando mudamos a alimentação e as condições da água o resultado foi satisfatório.”

Ao perceber que os peixes estavam mais nutridos e saudáveis, Walber se aprofundou nos estudos sobre como melhorar a performance dos peixes. Assim, ele levou o caso do seu viveiro para pesquisadores da Embrapa em Palmas (TO), que explicaram a importância e os benefícios do aprimoramento do ambiente e da ração adequada para o pirarucu. Este foi o primeiro contato do piscicultor com as práticas de bem-estar animal dos peixes.

Walber Coutinho de Melo buscou soluções para a criação de pirarucus através de pesquisas e técnicos — Foto: Acervo pessoal

Quanto menor o estresse, melhor a carne

Dados da Associação Brasileira da Piscicultura (Peixe BR) apontam que a piscicultura movimentou, em 2022, 860.355 toneladas, com cerca de R$ 9 bilhões, gerando perto de 3 milhões de empregos diretos e indiretos.

Além disso, nos últimos anos a produção de peixes saltou 48,6% no Brasil, indo de 578.800 t (2014) para 860.355 t (2022).

Tendo em vista o crescimento da criação de peixes, Roselany de Oliveira Correa, doutora em ciência animal e pastagens, e pesquisadora da Piscicultura da Embrapa Amazônia Oriental (PA), explica que o crescimento da piscicultura precisa vir acompanhado de boas práticas de manejo, como bem-estar animal.

Existem nichos que valorizam muito essa questão de saber em quais condições o animal está sendo criado. A ciência mostra que quando o animal é colocado em um ambiente em que ele se sinta bem, sem estresse, ele cresce muito mais e a qualidade da carne dele é melhor

— Roselany de Oliveira Correa, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental

De acordo com a especialista em piscicultura, o peixe é um animal senciente, ou seja, capaz de sentir e responder aos estímulos do ambiente com um certo grau de consciência.

Por esse motivo, aplicar técnicas de bem-estar animal na criação dos peixes – como Walber fez melhorando a qualidade da água e utilizando uma ração adequada para o pirarucu – é fundamental para o crescimento rápido e saudável dos peixes.

“Antigamente, quando se falava em bem-estar animal, a gente prestava atenção só nos aspectos físicos, ou seja, ele precisa estar bem alimentado. Mas hoje, a gente sabe que não é só isso, né? Parece brincadeira, mas os aspectos mentais também são importantes. O peixe tem capacidade de sentir e responder aos estímulos do ambiente. Então ele pode sentir estresse, medo, alegria. O piscicultor tem que saber identificar essas manifestações”, observa Roselany.

O transporte entre tanques do viveiro também pode ser um fator de estresse para os peixes — Foto: Acervo pessoal (Walber Coutinho de Melo)

5- práticas de bem-estar na piscicultura

Os efeitos do estresse na saúde e bem-estar dos peixes são notados através de aspectos físicos e comportamentais. Por isso, a qualidade da água, a alimentação adequada e a densidade do viveiro são ideiais para o desenvolvimento de cada espécie de peixe. Veja a seguir algumas práticas de bem-estar animal na piscicultura:

1. Alimentação adequada

Ao oferecer algum alimento para um animal, ele, interessado, logo se aproxima. Com os peixes não é diferente.

A alimentação é um ponto crítico. Na piscicultura, a gente trabalha com infinidade de espécies e cada uma delas tem uma exigência nutricional diferente. Fora que o hábito alimentar do peixe se altera conforme ele vai crescendo

— Rosenaly de Oliveira Correa

Segundo a pesquisadora, é preciso estar atento também à base alimentar do peixe. Existem espécies que são carnívoras, onívoras ou plantófogas, que se alimentam do plâncton. Por isso, é importante oferecer uma ração que se adeque à necessidade da espécie.

A ração para um animal carnívoro, não funciona para um onívoro, porque o carnívoro precisa de proteína animal, que condiz com o hábito alimentar dele. Sabemos que a ração é a parte mais cara da criação de peixes, mas não adianta comprar a ração vegetal para um peixe carnívoro só porque é mais barata. Dependendo da espécie, isso não vai nutrir o peixe, podendo até prejudicar o crescimento dele e, consequentemente, o lucro do produtor

Roselany explica ainda que a quantidade de ração também deve ser dosada para evitar o desperdício e o excesso de matéria orgânica na água. Ela sugere que o piscicultor vai oferecendo a ração à vontade e o peixe consome imediatamente, prática mais comum.

“Existe aquela regra dos 15 minutos que você joga uma quantidade suficiente de ração e espera o peixe consumir tudo em até 15 minutos. Se perceber que houve sobras, é preciso diminuir a quantidade na próxima vez.”

O método da tabela também é eficiente para mensurar a ração dos peixes. Esta consiste no cálculo da quantidade de ração em função do peso vivo do animal. Para isso, é preciso realizar biometrias periódicas, ou seja, registrar o peso do animal e fazer a curva de crescimento.

Com base nesse peso médio, o piscicultor pode fazer o cálculo e usar a tabela na hora de alimentar os peixes. “Essa é estratégia muito legal, porque o produtor já vai ter ideia do quanto aquele animal, daquele tamanho, consome. Isso evita desperdício“, explica.

De acordo com a pesquisadora, a ração é responsável por cerca de 70% dos custos do piscicultor. O processamento passa pela extrusão, que gera grânulos, formato com melhor estabilidade na água, que não esfarelam rapidamente.

2. Qualidade da água

A condição da água do viveiro se reflete na oxigenação adequada no viveiro é fundamental para evitar picos de estresse nos peixes. Segundo a pesquisadora Roselany Oliveira de Correa, se o peixe estiver boquejando na superfície da água, pode ser um sinal visível de falta de oxigênio.

Criar peixe, é, acima de tudo, saber como manejar a água. O aerador, por exemplo, é uma ferramenta essencial na piscicultura, porque promove a movimentação da água e a incorporação do oxigênio atmosférico na água, tornando aquele ambiente mais eficiente para o peixe

— Roselany Oliveira de Correa, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental

O aerador é um recurso que ajuda na incorporação do oxigênio – utilizado, principalmente, na adição de oxigênio na água do viveiro quando os níveis dessa substancia estão reduzidos.

No entanto, de acordo com a pesquisadora, 70% do oxigênio vem da fotossíntese das algas. O plâncton, ou seja, os organismos fotossintetizantes que ficam imersos na água, é fruto da adubação do viveiro logo no início da criação.

Roselany de Oliveira Correa destaca a importância do plâncton no viveiro, já que, quando os peixes ainda estão na fase de crescimento, eles filtram as substancias deste organismo, que são uma ótima fonte de nutrientes. “É como se fosse o leite materno dos peixes”, explica.

A correção da acidez da água também é um fator determinante para reduzir o estresse dos peixes.

O pH da água precisa estar equilibrado para garantir a boa sobrevivência do peixe. Algumas espécies não conseguem crescer bem, se estiver muito alterado. Então não pode ser muito ácido e nem muito básico

O excesso de matéria orgânica dentro do viveiro também é prejudicial aos peixes. Quando o produtor deposita uma quantidade de ração maior do que o necessário para os peixes, é natural que os restos do alimento afunde, entre em estado de decomposição se tornando alimento para bactérias. Esse processo faz com que as bactérias filtrem o oxigênio da água e liberem amônia (NH3), substancia tóxica – podendo ser fatal – para os peixes.

A temperatura da água também é motivo de atenção dos criadores de peixe. Segundo a pesquisadora, a temperatura ideal nos viveiros é de aquela entre 25 e 32 graus. No entanto, esse indicador pode variar de acordo com a temperatura ambiente.

Peixe boquejando na superfície da água pode indicar que o nível de oxigênio dentro do viveiro está baixo. — Foto: Globo Rural

3. Densidade do viveiro

A densidade do viveiro diz respeito a quantidade de peixes que aquela estrutura suporta, mas não só isso. Além da capacidade física do viveiro, os próprios peixes do ambiente podem se estressar com o excesso de animais.

A quantidade de peixe que a gente coloca no tanque depende da capacidade de sustentação dele. Por isso, é preciso mensurar a quantidade de peixe em um viveiro, considerando que eles vão crescer

— Roselany Oliveira de Correa

A renovação de água é uma das soluções para melhorar a condição de conforto do viveiro. A prática pode ser feita de minuto em minuto ou a cada 2 ou 3 horas, para tornar o ambiente menos rarefeito e melhorar a capacidade de sustentação.

Para não ter muito risco, recomendamos que o piscicultor calcule a densidade de estocagem do viveiro por metro quadrado. Então, se o viveiro tem 1000 m2, ele pode abrigar 1000 peixes para manter a qualidade de vida do animal, da água, de alimento, etc. O cálculo deve ser feito pensando desde a recria, quando o peixe ainda é pequeno, até a engorda.

4. Banho de sal antes do transporte

O transporte dos alevinos ou dos peixes já adultos para outros tanques também é causador de estresse para os animais. De acordo com a pesquisadora, o ideal é fazer o “arrasto” dos peixes. Apesar da prática ser condenada na pesca tradicional, se for utilizada uma rede de malha de multifilamento é possível transportar os animais de um tanque para o outro sem gerar muito estresse, além de não machucar e não prender a nadadeira do peixe.

Vale destacar ainda que é importante transportar o peixe com jejum de 24 horas. “Fazer o transporte de um animal de barriga cheia, em uma condição que já é estressante, porque eles são transportados em caixas ou em sacos plásticos com muitos outros peixes, faz ele expelir o que está no trato intestinal“, explica a pesquisadora da Empraba Amazônia Oriental.

Adicionar sal no viveiro antes de realizar o transporte pode diminuir o risco de estresse do peixe. Segundo Roselany Oliveira de Correa, o sal estimula a produção do muco, responsável por revestir e proteger a pele do peixe, impedindo que bactérias e fungos o acometam, além de provocar uma sensação de bem-estar no animal.

O abate inadequado dos peixes pode deixar marcas e pontos de sangue no músculo, características que não agradam o consumidor. — Foto: Wenderson Araujo/CNA

5. Insensibilização antes do abate

Uma das problemáticas mais faladas quando o assunto é bem-estar animal é o abate. Com os peixes, essa prática, apesar de pouco discutida, pode ser feita com mais cuidado para evitar que o peixe sofra algum tipo de estresse.

Na piscicultura, ainda é comum que o abate seja feito com pistola ou por asfixia, em que o peixe sofre até morrer, segundo estudos. Com isso, a qualidade da carne também fica prejudicada

— Roselany Oliveira de Correa

De acordo com a pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental, um dos métodos que reduzem o sofrimento dos peixes é a insensibilização dele no gelo e, em seguida, fazer o abate. Outro tipo de abate que causa menos estresse no peixe é a sangria, em que o piscicultor faz um corte na medula que insensibiliza o peixe.

Quando os peixes passam por um processo de estresse no abate, a cabeça e a perna ficam bem vermelhas, com uns pontos assim de sangue e essa é uma característica que não agrada ao consumidor. Por isso, as práticas de bem-estar animal durante o abate do peixe precisam melhores estudadas, trabalhadas e difundidas para os piscicultores – especialmente os menores -, mas ainda é um gargalo

Fonte: https://globorural.globo.com/